A ELA é uma doença que testa os nossos limites. Quando você acha que não dá mais conta, vem um novo desafio. E aí, você tem que escolher se desiste ou continua firme. Na maior parte das vezes, para seguir em frente, temos que abrir mão de algo, desapegar mesmo e isso não é fácil. Em todas as etapas da doença, eu ultrapassei meus limites, chegando muitas vezes à exaustão física eemocional. Mas como saber o momento de recuar para ganhar mais lá na frente? Certa vez escrevi no facebook: "persistência ou teimosia, como saber?" Alguém respondeu: "se o resultado for positivo é persistência; se for negativo é teimosia." Realmente, nos julgamos e somos julgados pelo resultado de nossas ações. Mas algumas vezes, no caso da ELA, os resultados podem ser desastrosos e fatais.
A minha doença começou pelas mãos, fui parando de fazer as coisas aos poucos. Lembro-me da primeira vez que não consegui cortar um pedaço de pizza. Peguei a pizza com a mão e meu marido me chamou a atenção, envergonhado. Foi uma situação nova para nós dois. A partir dali, alguém precisava cortar a comida para mim. Comi sozinha até onde pude. Eu apoiava o braço na mesa, fazendo-o de alavanca. Para chegar a comida, eu abaixava a cabeça. Fazia o mesmo para escovar os dentes. Como não tinha o movimento dos braços, eu balançava a cabeça para cima e para baixo. E para fazer xixi? Eu prendia o polegar na lateral da calcinha e ficava rebolando para ela descer e pulava para ela subir. Era tanto esforço para fazer tudo isso que eu ficava exausta. Inclusive, só parei de trabalhar, quando não consegui mais fazer xixi sozinha.
Com os membros inferiores, foi a mesma coisa. Ultrapassei meu limite. Levei tantos tombos que perdi a conta e não sei como não perdi os dentes. Quando uma pessoa saudável cai, ela apoia as mãos para se proteger. Mas eu não tinha o movimento dos braços para me proteger. Parecia um saco de batata caindo. Depois de 20 pontos na cabeça, muitos galos e muito rosto ralado, eu comecei a andar de braço dado com as pessoas. Dessa forma, eu tropeçava, batia os joelhos no chão, mas a pessoa segurava meu braço, impedindo que minha cabeça caísse. A partir daí, não sei como ainda tenho joelhos. Caí tantas vezes, que eles viviam em carne viva, não dava tempo de cicatrizar. Ainda tinha um agravante que quando eu estava com a minha mãe, ela não tinha força para me levantar quando eu caia e eu dependia da boa vontade alheia e isso nem sempre acontecia. Claro que eu ficava arrasada a cada tombo, mas sabe a música que diz: "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima"? Eu fazia isso.
Depois, veio a cadeira de rodas. Antes de comprar uma, eu aluguei para me acostumar com a ideia. Acho que foi uma boa decisão. Assim que fui para cadeira, fomos ao aniversário de um amigo do meu marido. Fazia meses que não víamos esse pessoal. Quando chegamos à festa, todo mundo ficou olhando para mim como se eu fosse um E.T.. Fiz uma cara do tipo nada está acontecendo e segurei as lágrimas que estavam na minha alma. Na verdade, as pessoas não estão preparadas para o que é considerado fora do padrão social normal. Com a cadeira de rodas, vieram as dificuldades de acessibilidade e de transferência da cadeira para o carro. É impressionante como as pessoas não respeitam as vagas de deficientes. Elas não são um luxo, são uma necessidade. Certa vez, eu e meu marido fomos ao prédio da Polícia Federal que fica no Setor de Autarquias Sul. Chegamos lá e havia dois carros na vaga de deficientes sem credencial. Estacionamos nosso carro atrás dos outros dois e deixamos minha cuidadora de olho. Ela disse que apareceu um casal de jovens que ficou sem graça e saiu de perto quando viu minha credencial. E os lugares? O único lugar realmente acessível é o shopping. O resto, pode saber, você terá dificuldade.
A minha transferência da cadeira para o carro foi outro desafio. As pessoas me levantavam pelas axilas, me abraçavam e eu caminhava até o banco do carro, onde eu era colocada de lado e virada depois. O problema era quando eu perdia a força das pernas porque vinha outro tombo. Cada saída era uma aventura. Mesmo depois de perder totalmente o movimento das pernas, eu ainda saí algumas vezes utilizando o guincho elétrico para fazer a transferência.
Mas aí a doença afetou a parte respiratória. Se você acha que já foi difícil o bastante chegar até aqui, você não sabe o que te aguarda. Este foi e é meu maior desafio. Comecei a sentir falta durante o dia até o momento em que tive uma queda brusca de saturação e precisei ser internada. Foi quando conheci o bipap, um aparelho que me ajudava a respirar por meio de uma pressão de ar no pulmão. Isso foi em agosto de 2013. Relutei em usá-lo, mas a dificuldade para respirar ficava cada vez maior. Ficou tão grande que chegou a afetar minha alimentação. Eu não conseguia comer. Ficava exausta. Mais uma vez, me esforcei. Relutei em fazer a gtt. E só aceitei colocar a sonda gástrica depois que emagreci 20kg. Confesso que, relembrando o que eu passei, eu devia ter feito a gtt antes. Mas eu tinha tanto medo de colocar uma sonda nasal que acabei postergando a gástrica, sem perceber que quanto mais eu postergava, maior era a chance de colocar a nasal de emergência. A minha sorte foi que nunca engasguei com comida. Mas engasguei com medicação. Daí, o comprimidos eram abertos e misturados à comida, alterando o gosto dela. Acho que isso acelerou o meu processo de emagrecimento.
E a respiração? Eu costumo dizer, quer saber como me sinto sem o respirador? Coloque um saco plástico na cabeça e amarre as mãos e os pés. Me sinto um pouco pior, mas a experiência está valendo para quem tiver interesse. Bom, sinto em informar que eu devia ter feito a traqueostomia, no mais tardar, em dezembro passado, quando minha secreção começou a aumentar. Lembra da história da persistência ou teimosia? Dessa vez, foi teimosia. Todos os dias, eu ultrapasso os limites do bom senso. Estou exausta e com medo. Não tenho mais força para aspirar o tanto de secreção que tenho. Às vezes, a falta de ar é tão grande que fico com as pernas e os braços dormentes e faço xixi na cama. Este é outro ponto, eu não uso fralda. Faço xixi na comadre. Não sei como vou me sentir depois da traqueostomia, mas acredito que pior não fique. Se eu puder dar a você, portador de ELA, um conselho, não enrole para fazer a traqueostomia. É necessário saber recuar para pegar impulso. Nunca desista, mas, sempre, mantenha o foco na sua qualidade de vida.
Quanto ao limite do ser humano. Bem, acho que não há limites. Felizmente, somos muito adaptáveis. Fora isso, podemos cansar pelo meio do caminho e, muitas vezes, desistir. Mas sempre haverá uma fagulha de vida dentro de nós que fará a gente persistir e até teimar, por que não? O mais importante é que essa fagulha nos mantém vivos e com esperança em dias melhores.
Essa última semana, eu tive uma infecção violenta. Fiquei muito mal. Gostaria de agradecer aos meus pais, meu fisioterapeuta, minha equipe de enfermagem e de cuidadoras por terem me ajudado a passar por esse momento. Foi um sufoco danado, mas a fagulha de vida que existe dentro de mim ainda falou mais alto.
Obrigada!
Beijo.
Dani.